O MITO E OS GRUPOS RELIGIOSOS AFRO-CUBANOS.
O mito é uma historia remota, uma fabula ancestral que representa um acontecimento expressado de forma poética e romanesca. Com o correr dos tempos são agregadas cenas ou símbolos a uma historia originaria. A questão por trás da fabula é o que no mito o verdadeiro se mistura com o ilusório. O caráter didático do mito é algo evidente, ele algo nos quer ensinar.
Assim o mito do homem que sonha com um tesouro escondido em Bagdá nas mil e uma noites ou os cantos das sereias que conta o grego dão vida a uma alegoria e a uma quimera.
O mito da princesa Zikán esta inserido num mundo que precisamos conhecer para entrar na questão do mito, o mundo a que nos referimos é o das religiões afro-cubanas.
No texto “A lenda Ñañiga em Cuba” Enrique Soares Rodriguez diz que dos Bantús chegou a Regla de Palo Monte, dos Yorubás a Santeria e de grupos multi étnicos do Calabar o Abakuá, podemos agregar também que de Benin (antigo reino de Dahoney) nos chegam os Ararás e os Vodous estes últimos fazendo uma ponte com Haiti .
Cada religião tem um mito sobre a origem do mundo, cada uma cultua diferentes divindades, cada uma delas tem sua música, seus instrumentos, sua dança, seus rituais e cerimônias; em fim toda uma liturgia, um conjunto de elementos (rezas, objetos, roupas, cores, gestos e palavras) onde encontramos a existência de todo um universo que envolve a estas manifestações do sagrado.
O Abakuá é uma destas religiões e no seu mundo tem rituais, grafismos, figuras dramáticas, músicas e claro toda uma mitologia. Os Abakuá não tem um mito de criação do universo, mas tem no mito da princesa Zikán uma mostra metafórica de como se inicia o culto do Som do tambor sagrado (Ekué).
A PRINCESA ZIKÁN.
Zikán era uma princesa Efor, é ela que se depara com o símbolo do mistério, ela de alguma forma é “ a recolhedora do liquido vital” (como diz o estudioso Ramon Torres Zayas), ela conhece –sem querer- o grande segredo e de alguma forma esse contato a eterniza ao mesmo tempo em que a condena.
Seu lugar como fêmea na historia é o de gerir, de fazer nascer e de mostrar o grande mistério para os homens que ao se tornarem conhecedores do símbolo do poder inauguram uma nova era.
A imagem deste lugar de um feminino sagrado relacionado com a fertilidade e com a água também aparece em outras culturas, a figura da princesa Zikán se assemelha com a imagem de uma peça de barro de Iemanjá de Benin (antigo reino de Dahoney).
Zikán parece também com a imagem de umas pescadoras nos quadros da artista russa Natalia Goncharova e na mitologia do Irã na imagem da mulher carregando o jarro.
Podemos encontrar certa similitude também com outras deidades da tradição Yorubá, no Candomblé do Brasil, por exemplo, a Orixá Oxum é a rainha da água doce e rege a fecundidade.
Zikán é em algum sentido o lugar do feminino como imagem poética da mulher colhendo água no rio. Zikán mostra a beleza do cotidiano de trabalho e ao mesmo tempo ela é a grande mãe, a que faz nascer o novo ao estar presente no mito inaugural e escutar o segredo (Uyo). A partir do qual a sociedade Ekpe dos Efor detém o segredo.
Ao conhecer o segredo Zikán é sacrificada e colocam sua própria pele para reproduzir o som do pez no tambor sagrado (Ekué) que representa a voz do espírito, que é ao mesmo tempo a voz do leopardo sagrado, que é a voz dos segredos do sobre natural.
O MITO EM SI MESMO.
Existem muitas versões do mito, vamos tentar conhecer algumas das suas possibilidades.
O fato de não poder localizar a historia em um tempo determinado parece nos dizer que é uma historia de todos os tempos. Situamos-nos na África, em Calabar, o rio Odánn separava ao povo Efor e Efik. O poder mágico era disputado entre todas as tribos. Abasí, o Deus supremo, tinha escolhido o povo Efor para revelar o Segredo. Clarividentes escutaram o anuncio que Abasí se revelaria num pez. O encontro entre o pez e os Efor aconteceu de uma forma inesperada.
O sacerdote Nasakó adverte ao Mokuire (rei dos Efor) que quem descobrir o segredo terá que ser sacrificado. Mokuire soube que o pez está em mãos de um mortal, vê a sua filha sair do rio e se desespera.
A princesa Zikán era filha de Mokuire, ela como o fazia cada manhã foi ao rio a buscar água num grande jarro que carregava sobre sua cabeça. Substituía um jarro que tinha deixado num canto no dia anterior na vera do rio Oddán e o trocava por outro vazio.
A bela Zikán quando transportava a água de volta para casa sentiu um rugido e deixou cair o recipiente. Ao cair a cabaça no chão ela percebe que o rugido que ela tinha ouvido saiu de um pez que tinha se introduzido na sua vasilha, seu pai assiste o episodio. Sem querer Zikán deu morte ao pez chamado Tanze que estava no jarro, o Tanze que tinha emitido a voz de Abasí (a deidade suprema) portador do grande mistério.
Na versão publicada por Jorge Castellanos e Isabel Castellanos: “La Sociedad Secreta Abakuá. Los Ñañigos” Zikán tenta fugir, mas uma serpente amarra sua perna, no momento em que aparece o espírito benéfico, o Íreme Eribangandó para a libertar. Ramon Torres Ayas nos esclarece que essa serpente é um símbolo de um sinal emitido por Nasakó para que o segredo não seja divulgado aos Efir.
Em outra versão do mito ela escuta o som e chega a mostrar Tanze para seu pai Mokuire e este - que também escutou o som- pediu para ela calar o ocorrido e levou a noticia ao sacerdote Nasakó. O sacerdote cuidou por um tempo de Tanze e o povo Efor começa a viver momentos de fecundidade e de gloria.
O pez fora do seu habitat morreu e o som acabou, Nasakó precisaria reproduzir esse som por médio de um tambor de fricção.
Em outra versão (lembrada pelo estudioso Tato Quiñones) Zikán confiou a narração ao seu marido Mokongo filho do rei dos Efik.
Os Efik assistindo o momento de gloria dos Efor e sabendo por Mokongo (marido de Zikán) que eles conheciam o mistério quiseram também conhecer o segredo; primeiro com ameaças, depois pelo uso de extorsões até que depois de muito tempo conseguiram conhecer o segredo dos Efor.
Longe de isto criar uma disputa prolongada o segredo foi compartilhado pelos dois povos o que resultou na união das duas tribos os Efik e os Efor.
Voltando ao que aconteceu com a princesa, Zikán foi condenada a morte e sacrificada ritualmente.
Aqui nos deteremos para olhar com mais atenção estes os fatos e levantamos três caminhos:
Se o sacrifício resulta aparentemente como uma forma de compensar ao Deus Abasí por ter deixado morrer acidentalmente ao Tanze então seria castigada por algo que ela fez de forma involuntária, o que seria uma injustiça.
Ficariam duas possibilidades: se a princesa Zikán foi sacrificada como foi anunciado pelo sacerdote Nasakó apenas pela sina ou se ela foi castigada por ter cometido sacrilégio ao revelar o segredo.
No caso da primeira hipótese existe um ditado que levanta a questão de que o contato com o divino ao mesmo tempo em que inspira ao homem também o destrói.
Vemos isso dito na poesia e na literatura quando, por exemplo, Julio Cortazar no conto “O perseguidor” descreve a um Charlie Parker genial e consumido pelo seu próprio talento.
A segunda hipótese (a de pensar que ela foi sacrificada por ter contado ao seu marido o segredo) é algo sem saída porque ela não poderia se calar frente ao seu conjugue embora essa revelação fosse paga com sua própria existência.
Sobre a morte de Zikán temos que entender esse sacrifício de uma forma diferente que entenderíamos um caso assim no nosso tempo.
A pele de Zikán -por ela ser a primeira ouvinte- seria empregada para construir o primeiro tambor sagrado, mas a pele dela não consegue ser usada para cobrir o tambor e reproduzir o som, então se recorre a várias outras peles até chegar à pele do bode.
Esta parte do mito parece indicar que a morte de Zikán não ocorreu na realidade e que esta cena reproduz o sacrifício do bode como uma forma simbólica de oferecer a Abasí uma oferenda para compensar a morte do Tanze.
No ato da morte de Zikán seu sangue é levado para ser misturado com o Tanze no intuito de renascer o pez e seu corpo é em parte usado para fazer o tambor, outra parte é enterrada e depois com suas cinzas são realizadas inscrições rituais , suas entranhas foram usadas para alimentar um espécie de recipiente onde se guardavam elementos referentes à magia e seu crânio foi guardado pelo sacerdote no seu espaço ritual.
INTERPRETAÇÃO FINAL.
A alegoria do mito parece indicar a busca do homem pelo som que pudesse evocar ou revelar o conhecimento, o mistério, a sorte, a gloria que finalmente une as tribos e instaura a paz entre a humanidade.
Zikán é uma deusa evocada na figura do bode e sua matéria misturada com a de Tanze ajudam a construir o tambor sagrado que produz o poderoso som.
Muitas interpretações se orientam entendendo o mito como o passo do matriarcado para o patriarcado , outros como a fabula da fêmea que ao conhecer o mistério morre para que os homens possam impor um mundo masculino sem interferência feminina.
Preferimos caminhar pelos caminhos do poético interpretando o mito como uma mensagem de paz entre os povos a partir do som e da musicalidade.
A fêmea aqui seria a personagem que estaria predeterminada ao sacrifício por ter gerado o conhecimento do sagrado e o som aqui seria a busca pelo mágico que encontramos na beleza da Arte.
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