terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Música "culta" e popular.

Reflexões sobre a música popular e a música de concerto.

A convivência entre a música folclórica e de concerto é frutífera; a primeira alimenta uma grande arvore de características múltiplas  envolvendo ritmos, melodias e um comportamento espontâneo que inclui a improvisação; toda esta pluralidade pode ser absorvida pela música “culta” e ao mesmo tempo essa convivência  pode  produzir uma simbioses, uma troca edificando  a música popular em varias direções propondo uma interação enriquecedora para ambos os lados.

Influencias de um lado.

No Barroco músicos como Johann Sebastian Bach ou Georg PhilippTelemann (1600)ao mesmo tempo que se inspiravam em motivo s populares não deixavam de usar recursos polifônicos ou fugas no comportamento da suas obras.
A música popular;  com seus ritmos, suas canções e seus rituais, realiza uma espécie de chão, de alicerce, de fundamento cultural de onde surgem diferentes possibilidades; estas variáveis embora com mudanças guardam uma marca, uma pegada  que nos remete ao seu ponto inicial: Igor Stravinsky no dia da estréia da sua obra “sagração da primavera”, na França, no meio das vaias do publico falava no palco para o coreografo Vaslav Nijinsky: “Mas, é música popular! é música popular!”.
No Brasil artistas como Heitor Villa-Lobos, Guerra Peixe, Radamés Gnatalli incorporaram esta estética dando continuidade a essa convivência entre o popular e o clássico.
Na Argentina Alberto Ginastera, Carlos Guastavino e Astor Piazzolla também dialogaram entre estes dois territórios.
No jazz músicos como George Gershwin, Cole Porter, Duke Ellington  compunham musicais ou operas desde este conceito; mas perto de nos:  Bill Evans e Tom Jobim gravaram discos orquestrais com arranjos de Claus Ogerman, por exemplo, onde o swing e a temática popular alimentam o colorido instrumental.

Influencias do outro lado.

Podemos observar como ao mesmo tempo em que a música popular alimenta a música de concerto, esta também nutre a popular em quatro aspectos fundamentais: no ritmo, na harmonia, na dinâmica e nas formas.
No ritmo incorporando compassos de 7, 5, 9 que não são usados no cotidiano de nossa audição; músicos como Dave Brubeck  no disco “ Time out” de 1959 e Hermeto Pascoal ao longo da sua obra experimentam com estes compassos para dar nova vida aos ritmos folclóricos.

No disco de Brubeck, por exemplo, na primeira faixa, no tema "Blue Rondo à la Turk" começa com um compasso em 9/8 (mas com uma subdivisão de 2+2+2+3  (o padrão normal para o 9/8 seria de 3+3+3) o que cria uma sensação de instabilidade.
A busca pela ruptura dos ritmos no meu entender tem um paralelo nas artes plásticas com a busca de novas configurações propostas com artistas como Joan Miró, inclusive dele é a capa do famoso disco no qual Brubeck populariza esta procura.
Na parte harmônica, muitos artistas se entusiasmaram pelo uso de novos acordes que incorporaram dissonâncias; esta nova estética que começara a ser usada por compositores impressionistas como Claude Debussy ou Maurice Ravel influenciou músicos de jazz como Thelonius Monk e Bud Powell, pianistas de bossa nova como Luiz Eça ou do tango novo como Atilio Stampone.
Temos também que a música popular ganha em nuances quando ela utiliza dinâmicas, diferentes intensidades no seu comportamento, ao mesmo tempo ela cresce incorporando interlúdios e diferentes pontes na suas formas tradicionais, formas que raramente passam de parte A, B  e C ou verso e refrão no estado primitivo.

Reunindo os mundos.

Podemos citar as experiências de músicos como Pat Metheny Group no tema “Minuano”, Chic Corea  no tema  “Falling Alice” , Miles Davis no disco “Sketches of Spain” (1960) ou os dois discos de Charlie Parker com cordas, oboé, arpa e trio de jazz, ,para constatar que todas estas músicas dialogam perfeitamente entre os atributos dos dois territórios produzindo experiências bem sucedidas em termos artísticos
O uso das ferramentas das duas fontes exige um estudo e uma convivência para que o amalgama se torne natural ; entre os artistas atuais que percorrem este caminho podemos achar no Brasil o projeto do Jaques Morelenbaum e Cello Samba Trio ,os diferentes discos do Egberto Gismonti , o grupo Pau Brasil , os arranjos sinfônicos para a obra de Edu Lobo e João Bosco, o disco “Ouro Negro” dedicado a Moacir Santos,os projetos do pianista André Mehmarimais recentemente o disco do quarteto Universo Diverso que interpreta Hendel e Chopin com uma atitude espontânea.

Em Cuba esta estética tem continuidade nos projetos de Chucho Valdes nos quais ele mistura as raízes do Candomblé com um contexto atual de jazz contemporâneo; na Argentina o pianista  Enrique "Mono" Villegas tocava no mesmo espetáculo Schumann, Bartok  e jazz;   podemos lembrar também as experiências com o folclore como a do Waldo de los Rios no inicio da sua trajetória ou a de músicos como Pablo Aslán, Carlos Franzetti ou Daniel Binelli afirmam esta tendência.

 

Conclusões

Teatros, selos, prateleiras, programadores de rádio, críticos e curadores de festivais dividem algo que esta junto na natureza, no nosso dia a dia, desde os primórdios da humanidade.
Decompor uma programação musical ou um enfoque de ensino em conteúdos populares e ilustrados parece algo artificial, mas é o que mais temos no nosso cotidiano.
O que esta atrás de esta visão dividida no fundo envolve questões como o racional e o intuitivo, o escrito e o improvisado. Atrás desta fenda aparecem as forças que sustentam a divisão, de um lado a  cultura acadêmica cientificista e do outro a cultura oral, ancestral, no fundo a velha ideia hierárquica entre  civilização e  barbárie
Se na vida real de um músico ou de um ouvinte estas duas correntes são aceitas de modo natural  como afines, não podemos deixar que elas apareçam enfrentadas e irreconciliáveis no mundo fora .
Se o mito fundador da música na sua essência é popular ele se desenvolve com as elaborações do espírito artístico em uma relação amorosa, não de conflito.    .





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