A
musicalidade Abakuá.
Roberto Rutigliano (2020)
“No tambor fala Deus”.
“Não há Deus sem Ékue, nem Ékue sem Deus”.
(provérbios do Abakuá)
Índice temático.
Para abordar este tema vamos a dividir a aproximação em uma introdução e dez tópicos:
1. O tambor sagrado.
2. O som.
3. A simbologia do bode.
4. A simbologia do leopardo
5. A simbologia do tambor.
6. O tambor de fricção.
7. A instrumentação das cerimônias.
8. Os cantos.
9. O legado musical do Abakuá.
10. Os músicos desta tradição.
Introdução.
Como introdução é preciso descrever um pouco a cultura Abakuá.
A sociedade Abakuá cubana é uma instituição de ajuda mutua, é uma associação mágico esotérica que herda a cultura dos ekpes (egbes) africanos, a sociedade do leopardo, também conhecida como homens leopardos, oriunda de Calabar , território atual de Nigéria na África próximo de Camerún. Se conhece a seus membros como ñañigos ou calabaríes , eles cantam em língua Efí (embora ela não seja totalmente pura e sim povoada de termos criados em Cuba).
A sociedade é de característica fechada, secreta, formada só por homens e é conhecida pela sua musicalidade, pelos rituais, pela existência dos Íremes ou diabinhos e pelo uso de grafias específicas chamadas Gandos, Anaforuanas e sellos.
Existem rituais públicos conhecidos como “plante”, mas alguns detalhes especialmente os referidos ao Ékue (tambor sagrado) não podem ser revelados justamente porque poderiam ser interpretados como uma profanação ao mistério.
Aqui o registro de um plante
Mais informações podem recolher no livro de Jorge
Castellanos e Isabel Castellanos “Cultura AfroCubana tomo III”. Universal Miami 1992.
E na teses “La Sociedad Secreta del Leopardo entre África.y América: la búsqueda de
una identidad”. Viridiana Tamorri.
1. O Tambor sagrado.
O Tambor sagrado, o Ékue (Ékwe), é um instrumento de percussão de fricção com uma haste externa , uma espécie de cuíca grave, ele justamente no Abakuá está reproduzindo o som que no remete ao mito da princesa Zicán.
O som evoca o rugido de um leopardo, é um som grave, ronco que reproduz o som que aparece na boca de um peixe (Tanze) que era o Deus (Abasí) e que foi encontrado pela princesa Zicán no vaso onde ela colhia água na vera do rio.
Na tradicional lenda se constrói um tambor para reproduzir o som sagrado, o instrumento é coberto por uma pele de bode (mbori) e seu som nos coloca em contato com a revelação dos mistérios (Úyo).
Em Cuba nas cerimônias e rituais o contato com este som desperta nos participes uma experiência reveladora e transcendente. Nas cerimônias de iniciação, se acredita que o contato com o som do Ékue transmite aos principiados a virilidade e a valentia do leopardo. O Ékue permanece oculto no quarto sagrado e os participantes só tem acesso a seu som. (Ilustração de Baikis Ayon).
Evitamos publicar fotos do Ékue e divulgar seu som justamente para respeitar o sentido privado que os abakuás dão ao instrumento e ao seu som.
2. O Som.
O Abakuá afirma o mito da existência de um Som com poderes de fecundidade e prosperidade, ele (o Abakuá) parte da ideia de que o poder emana de um Som.
O som é também um veiculo entre o mundo visível e invisível e fundamentalmente o som é capaz de alterar estados de consciência ou abrir canais de percepção mais profundos.
Nesta cultura ouvir é o que nos permite o acesso a um estado de conhecimento maior. Esta ideia esta presente em outras culturas: escutar o som continuo ao modo dos mantras na Índia, por exemplo, provoca um estado de consciência diferente. No Candomblé o som de uma célula rítmica determinada repetida ou uma frase do Rum (instrumento solista) convida ao transe mediúnico .
Esta afirmação do som como sinônimo de apertura de sabedoria desenvolve uma máxima na cultura Hausa ao afirmar que “ouvir é conhecer”.
Existem outras culturas africanas onde o contato com determinado tipo de som também alteraria o estado de consciência, na cultura Ivanga, por exemplo, se afirma que escutar os chocalhos que tremem pendurados das cadeiras das dançarinas também produziria efeitos no estado de consciência.
Aqui um vídeo sobre este ritual
Relacionado com isso uma das coisas mais fantásticas do Abakuá é a questão da busca do Som, isto se desdobra na procura pela pele do tambor para que ele soe de forma que consiga reproduzir exatamente o som de Tanze.
Embákara (filho da primeira geração dos abakuás) guardava as peles que Nasakó (o grande sacerdote) escolhia. A cena reproduz o fato de como para chegar ao som desejado foram experimentadas por ele (por Nasakó): peles de pez, de roedores, pele humana, de leopardo, de cobra, de crocodilo, de veado, de cordeiro até encontrar a pele de bode que era a adequada para poder reproduzir o som desejado.
Para quem quiser saber mais sobre este tema: Isabela de Arazandi escreveu um artigo “El sonido del espíritu en las sociedades secretas de Africa” disponível na web.
3. A Simbologia do bode.
A pele do Bode foi escolhida para cobrir o tambor sagrado. O bode, na tradição, é o animal símbolo de fertilidade e resistência. No Candomblé (no Brasil) o bode é um animal sagrado que se usa em sacrifícios e está associado com Exu (Elegba na Santeria).
Para os gregos o bode esta relacionado com o mito do Dionísio e está presente no mito do nascimento de Zeus: a cabra foi o animal que amamentou Zeus.
Na tradição nórdica ele está associado com a figura de Thor Deus dos raios “Senhor dos Bodes”. Ele se transportava numa carroça tirada por dois bodes, estes bodes representavam a virilidade e a luta.
Mais referencias em “Thor, o Senhor dos Bodes: Um estudo de simbologia” Leandro Vilar Oliveira.
4. A simbologia do leopardo.
A Sociedade Secreta Abakuá representa a transculturação em Cuba da africana Sociedade do Leopardo Ekpe das etnias Efik, Efor e Oru de Calabar, estas etnias compartiam os cultos totêmicos do pez e do leopardo, do bode, do galo , da serpente, do crocodilo , assim como o culto dos antepassados e das forças da natureza.
O leopardo, (Ekpé) é justamente o inspirador do som, do seu rugido surge o Ékue, o instrumento sagrado que reproduz o som do animal. O próprio nome como são reconhecidos os membros do Abakuá “Ñáñigos”, é uma palavra que deriva do vocábulo “ñan-ñan” que significa arrastado o errático, algo que se relaciona com o leopardo por recordar os movimentos do animal.
O xamanismo, por sua vez, vê o leopardo como um guardião que protege espiritualmente os seres humanos das forças ruins ou obscuras do universo.
O leopardo é um totem muito antigo e poderoso. É um símbolo da coragem, do valor e do poder.
5. A simbologia do Tambor.
O tambor nos remete a uma evidente ancestralidade. Evoca um primitivismo claro e profundo. Ele é um símbolo da resistência negra na America e uma prova da riqueza das cores da música oferecendo todo um leque de timbres e de sons.
O Tambor está presente na cultura dos Xamãs, a lenda afirma que um xamã molda seu tambor com um galho da Árvore Cósmica, durante um sonho de iniciação.
Nas guerras se usava o tambor para insuflar coragem nos soldados. Nas tradições grega e romana, o tambor está ligado ao deus da guerra Ares e Marte respectivamente.
Entre os lapões (suecos, russos, finlandeses e noruegueses) o tambor também é usado para adivinhação.
Entre os maias-quiché (Guatemala), é a representação simbólica do trovão, do poder da morte e da fertilidade.
Na África está intimamente associado a todos os acontecimentos da vida humana. Ele é a comunicação, o principal e o mais natural, imediato e intuitivo instrumento do cotidiano histórico.
Na China, no Japão e na Coreia existem orquestras de tambores chamadas Taikô , no norte da Argentina as mulheres “cajeras”cantam versos improvisados se acompanhando de um tambor.
Em Brasil como em Cuba existe uma infinidade de tambores de diversos tamanhos e sonoridades, sempre ligados a contextos sagrados ou festivos.
O maior simbolismo do tambor tal vez seja justamente o que alcança na cultura Abakuá onde é tratado como uma divindade.
6. O tambor de fricção.
No Brasil o instrumento se chama Puita, Onça ou Roncador. Ele esta presente nos Congados, no Jongo, no Bumba Meu Boi, no Maracatu Rural e no Samba carioca, mas sempre com um comportamento de base ou de efeitos e quase sempre se encontra com a haste colocada na parte interna do instrumento.
Ao longo da historia na África o tambor de fricção é usado em cerimônias fúnebres ou em evocações alegóricas e sempre com alguma referencia mítica com o leopardo ou o leão. O instrumento aparece na Espanha com o nome de “Zambomba”, na Itália e em Portugal com o nome de “Sarronca”.
O tambor em Cuba é utilizado também pela tradição Kinfuiti (da província de Mariel), mas este tambor de fricção que se utiliza é o de haste interna e se usa com uma função de acompanhamento das cerimônias. Aqui um vídeo da musicalidade Kinfuiti.
No caso do Abakuá o Ékue tem a haste externa, o que facilita a execução continua.
Uma curiosidade referente ao tema : entre os cargos dentro do Abakuá existe o Moní Bonkó foi um rei e artesão que fabricava tambores. Ele tem o cargo de tocar o tambor maior (Bonkó enchemillá) , algo similar com o cargo de Alagbé no Candomblé do Brasil.
Para se aprofundar mais no instrumento podem consultar a teses de Rafael Bemvindo Figuereido Galante “Da cucópia da cuíca: A diáspora dos tambores africanos de fricção e a formação da musicalidade do atlântico negro séculos XIX e XX”.
7. A instrumentação.
A orquestração básica da orquestra de Abakuá precisa de sete instrumentistas, envolve um sino marcando uma referencia rítmica , um quarteto de tambores , uma base com som de madeira, efeitos, coro e solista.
Este tipo de desempenho, de tambores de base e um solista, repete o mesmo comportamento que ocorre em muitas outras tradições africanas como no Candomblé e na Santeria.
Biankomeko é o nome do conjunto de instrumentos usados nos rituais. O comportamento dos tambores é o seguinte: o primeiro instrumento toca a terra, o segundo e o terceiro fazem o contraponto e o quarto (o maior) é o solista. Os nomes são: o tambor maior bonkó echemiyá e os menores chamados de enkomos recebem o nome de: biankomé, obi apá e cuchi yeremá , completam a orquestra o ekón , erikundé e as echerikaguá e checheribó.
O Ekón, o cencerro, (sino de vaca) toca a clave e dialoga com os Íremes, eles respondem fazendo tremer os Enkaniká ( pequenos sinos pendurados) . O Erikunde alimenta a orquestração (são uns chocalhos que convocam os espíritos) . Checheribó ou Cherikagua são similares aos Caxixis, eles completam a formação musical.
Alem dos tambores e do Ekón , temos o som das baquetas (itones) batendo na madeira da vera do tambor maior com uma frase que realiza uma função similar a conhecida como “palito” dentro do estilo Rumba Guaguancó.
A função do tambor maior, igual que o Rum dentro do Candomblé esta numa total comunicação com os Íremes.
Quem quiser se aprofundar pode consultar o livro do Ramon Torres Ayala “Abakuá la decodificación de um símbolo” (página 52 até 55).
Aqui dois vídeos falando sobre a instrumentação e a musicalidade com depoimentos de Ramos Torres Zayas e de Lino Neira entre outros.
Aqui uma mostra que desmembra a orquestração
Aqui a partitura da orquestração.
8. Os ritmos e cantos.
O ritmo Abakuá é um só, pode ser mais rápido e mais lento, se diferenciam com os nomes Efi (mais rápido e incisivo) e Efo (mais lento e suave), também esta mudança de andamento se pode interpretar como mais rápido o Abakuá de Habana e mais lento de Matanzas.
O ritmo é em 6/8 e a Dança acompanha os movimentos dos estilos .
No Abakuá existem os Enkames são narrações que podem ser letras de canções, estas tem características variadas: relata fatos históricos, tem uma função pedagógica, de diversão, uma função ritual, ela narra provérbios de contudo poético entre outras possibilidades.
Basicamente as formas das músicas tem um refrão ou uma melodia curta e um solista (Moruá- yuansa) que cria um contraponto com o tema.
Vamos a analisar alguns exemplos para ver o que ocorre na pratica:
Ouvimos a gravação “Ibiono”. O tema: Bacoco Efo, Betongo Efo.
Até o minuto 2:20 existe uma voz realizando uma apresentação , esta voz tem já uma musicalidade típica Abakuá.
A partir desse momento começa outro discurso já mais melódico , com o coral cantando um refrão ao mesmo que entram os tambores e o sino.
No minuto 4:42 se formaliza uma melodia mais clara similar ao que entendemos como “canção” ou refrão e resposta . No minuto 6:03 muda de tema e recomeça no clima que propus a partir do minuto 4:42, depois retoma o comportamento refrão , resposta do coro.
Na mixagem do som se escuta bem o sino, o tambor que se comporta como o salidor e o tambor solista. No som real, ao vivo, o grupo de percussão soa de forma um pouco mais caótica e as vozes se misturam.
Segundo exemplo. Ouvimos a gravação “Ibiono”. O tema: Oru Afiana.
Começa com um discurso e com algumas intervenções do coro, isso até o minuto 2:53.
A partir desse momento entra a percussão e o solista começa outro discurso já mais melódico, o coro no 3:47 canta uma melodia que vamos a encontrar habitualmente no repertorio Abakuá.
No minuto 4:53 o coral já canta uma melodia maior e foge do comportamento de dar apenas respostas. No 5:39 volta a cantar o refrão . Este refrão aumenta a empolgação até partir para outro tema depois do minuto 8:00. Aqui volta a se comportar como coro e solista até subir a temperatura da interpretação.
Terceiro exemplo. Ouvimos a gravação “ Les danses TT dieux” : Wemba TT Abakwa
Começa (como é habitual) com uma apresentação e depois entra o canto e a percussão, a diferencia das gravações anteriores se escuta menos o sino e mais o tambor solista.
O tipo de melodia é bastante frequente e podemos destacar a beleza melódica da voz do solista. A música sobe de andamento e temperatura até chegar a um êxtase.
Outra observação: Estas gravações servem para apreciar a beleza da musicalidade, mas elas não conseguem passar o que acontece de forma desarrumada nas cerimônias ao vivo.
Nos exemplos de som ao vivo, é importante destacar que antes da entrada dos Íremes existe um momento de descontração e de improviso.
Outra observação: Os movimentos do Íreme se espanando está associado com o fato do Íreme estar chegando do mundo dos mortos e se limpando o corpo, os dançarinos fazem o mesmo com um lenço vermelho, este gesto aparece também na dança da Rumba Guaguancó.
Aqui uma filmagem muito bonita para televisão onde se pode apreciar a musicalidade Abakuá.
9. O Legado musical do Abakuá.
O legado mais visível do Abakuá é a Clave. A ideia de colocar a clave na música como fator ordenador, como guia, como centro de gravitação e como elemento que dá uma direção rítmica à música é uma contribuição histórica da cultura Abakuá na musicalidade cubana.
Este principio musical que influenciou a Rumba e ao Son, dois dos estilos mais importantes da ilha é uma contribuição de Ignácio Piñeiro nas primeiras décadas do século XX. Ele também era compositor e poeta de músicas em estilo Yambu e Son habanero.
Os estilos não foram criados por ele , nem a clave é uma herança só do Abakuá, mas com Ignacio Pinñeiro se cristalizou este legado de forma definitiva.
Piñeiro era ñañigo e a semelhança entre a estrutura dos cantos de Abakuá e da Rumba é algo evidente.
Ignacio
Piñeiro e Maria Teresa Vera.
Uma das primeiras experiências que trazem a musicalidade do Abakuá na música popular cubana foi em 1920. Uma joia criada para narrar de forma irônica como os brancos queriam tocar e dançar a música de Abakuá.
Aqui uma
reunião de abakuás em homenagem a Ignacio Piñeiro.
10.
Os
músicos desta tradição.
Entre os músicos mais conhecidos de esta tradição podemos encontrar a Patato Valdés, Chano Pozo, Cheo Marquetti, Félix Chappotín, Ignacio Piñeiro, Juan de la Cruz Hermida, Mongo Santamaría, Pello El Afrokán, Silvestre Méndez e até o poeta Jesús Orta Ruiz.
Vamos escutar agora alguns exemplos:
Cheo Marquetti & Septeto Cauto - Efi Embemoro
Sexteto
Habanero - Criolla carabalí
Chano Pozo – Abasí
Arsenio Rodriguez Mambo Abakuá
Mongo
Santamaría and his Afro-Cuban Group – Abacuá Ecu Sagare
Cachão protesto Abakuá
Conjunto Roberto Campos – Abacuá
Los
Muñequitos de Matanzas cantan Saldiguera y Virulilla – Ritmo Abakuá
Mongo Santamaría & Justo Betancourt – Ubané (canto abacuá)
Los
Papakunkun. Rapsodia Abakuá
Patato
y Totico . Ya Yo E (Canto Abakuá)
Grupo Afro Cuba. Abakuá.
Maiores informações na coleção Gladys Palmera, texto de José Reyes Fortún.
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Conclusões:
Mais de 200.000 carabalíes chegaram a Cuba . Eles foram sequestrados e trazidos como escravos. Este povo tinha conseguido nunca ser invadido , mas foi vencido e trazido a América como prisioneiro de guerra para trabalhar na Havana , em Cuba.
Eles criaram Cabildos e uma associação secreta de auto defesa . Esta ideia simples de se proteger ajudou a preservar a cultura Abakuá.
Hoje temos liturgia, música, dança, instrumentos, mitos e lendas que sobreviveram a todo este tempo.
A cultura carabalí é muito importante e se podemos usufruir desta riqueza é graças ao espírito de fraternidade de um povo que se manteve unido e lutou por preservar sua identidade.